Introdução
A relação entre saúde mental e doença cardiovascular (DCV) tem recebido atenção crescente na prática clínica. Condições como depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) não apenas elevam o risco de desenvolvimento de doença cardiovascular, mas também pioram o prognóstico em pacientes já diagnosticados.
Em agosto de 2025, a Sociedade Europeia de Cardiologia (ESC) publicou uma Declaração de Consenso Clínico com recomendações para integrar a avaliação e o manejo da saúde mental à prática cardiovascular. O documento representa um avanço importante para a cardiologia moderna, enfatizando a abordagem centrada no paciente e a atuação multidisciplinar.
Principais recomendações da diretriz:
1. Reconhecimento da relação bidirecional
- Condições psicológicas adversas (estresse, isolamento social, depressão) estão associadas a aumento de risco para eventos cardiovasculares.
- Pacientes com doença cardiovascular têm maior prevalência de transtornos mentais, impactando adesão ao tratamento, qualidade de vida e mortalidade
2. Triagem sistemática e modelo de cuidados escalonados
- Recomenda-se triagem de rotina para depressão, ansiedade e TEPT, especialmente após eventos como infarto, insuficiência cardíaca, parada cardiorrespiratória ou revascularização miocárdica.
- O tratamento deve seguir um modelo escalonado (stepped care), envolvendo intervenções psicossociais, terapias psicológicas e farmacológicas, conforme a gravidade.
3. Abordagem multidisciplinar: equipes “Psycho-Cardio”
- A diretriz propõe a criação de equipes integradas com cardiologistas, psiquiatras, psicólogos e profissionais de enfermagem.
- É orientada também a adoção dos princípios ACTIVE, os quais propõem uma abordagem multidimensional, personalizada e proativa para melhorar tanto os desfechos cardíacos quanto o bem-estar mental dos pacientes.
4. Recomendações farmacológicas
- Evitar benzodiazepínicos como primeira escolha para ansiedade e depressão em pacientes com doenças cardiovasculares.
- Em pacientes com arritmias ventriculares, antidepressivos que prolongam o intervalo QTc (como antidepressivos tricíclicos e citalopram/ escitalopram) devem ser usados com cautela. Monitorar ECG e eletrólitos antes e durante o tratamento.
- Uso restrito de antidepressivos em insuficiência cardíaca (IC). Antidepressivos devem ser considerados apenas em casos de depressão grave, quando os riscos de não tratar a depressão superam os potenciais riscos cardiovasculares. Adicionar antidepressivos aumenta o risco de interações medicamentosas e de efeitos adversos cumulativos, como hiponatremia e disfunção hepática.
5. Reabilitação cardíaca como oportunidade
- A reabilitação é momento estratégico para:
- Detectar sintomas emocionais;
- Iniciar terapias não farmacológicas (psicoeducação, grupos de apoio, mindfulness);
- Integrar cuidados físicos e mentais em um único programa.
6. Atenção a grupos vulneráveis
- Condições mentais graves (como esquizofrenia ou transtorno bipolar) elevam o risco cardiovascular. Nesses casos, é essencial avaliação regular e controle de fatores como ganho de peso, diabetes, dislipidemia e tabagismo.
- Mulheres, idosos, populações socioeconomicamente desfavorecidas, doenças oncológicas, migrantes, pessoas com câncer e que possuem doença cardiovascular representam grupos com particular vulnerabilidade e merecem abordagens diferenciadas.
Lacunas de evidência e perspectivas futuras
A diretriz destaca a necessidade de:
- Ensaios clínicos randomizados envolvendo intervenções psicológicas e farmacológicas em pacientes com transtornos mentais e doença cardiovascular;
- Recalibração dos escores de risco cardiovascular para pacientes com transtornos mentais graves;
- Estudos sobre modelos de cuidado integrados e custo-efetividade.
Conclusão
A ESC 2025 promove uma mudança de paradigma: saúde mental e cardiovascular devem ser abordadas de forma integrada. Triagem sistemática, equipes multidisciplinares, uso criterioso de fármacos e atenção a populações vulneráveis são pilares para melhorar a qualidade de vida e os desfechos clínicos.
Essa integração reforça a ideia de que cuidar do coração também significa cuidar da mente.